julho 31, 2008

FRANCISCO JOSÉ


Faz hoje vinte anos que partiu o Francisco José (Galopim de Carvalho).
Nascido em Évora a 16 de Agosto de 1924, faleceu a 31 de Julho de 1988 com 63 anos. O Chico Zé, como era conhecido, trouxe na sua época uma lufada de ar fresco à canção portuguesa, com a sua voz melodiosa. A sua ida para o Brasil, deveu-se à ruptura com a RTP ao denunciar num programa em directo, a forma como eram tratados os artistas portugueses e nos miseráveis “cachets” que recebiam.

SANDRA CRISTINA

CANTAR / 1991

Há muita gente a meu lado
Que me tem dito em surdina
Não deves cantar o fado
Ainda és tão pequenina

Não hesito em responder
O que penso ser verdade
Deixem cantar quem quiser
O fado não tem idade

De cantar até aposto
Gostava quem me diz isso
Se canto é porque gosto
Ninguém tem nada com isso

Tal e qual o respirar
Que o ser vivo domina
Eu morro se não cantar
Qu’importa ser pequenina

Enquanto voz Deus me der
Não m’importa o que se diz
Serei fadista e mulher
E a cantar vou ser feliz

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

O Albérico Pereira, é uma personagem demais conhecida no ambiente do fado no Porto. Fez parte da coordenação e apresentação, do programa da rádio “Fado Vadio”, coadjuvando José Neves aos domingos de manhã. Deve-se a ele, a aparição de muitas das vozes que hoje preenchem o panorama do fado na cidade. Dono de uma forte personalidade que sabe congregar à sua volta, um basto leque de amigos em todos os quadrantes do fado.
Quanto ao Márcio é empregado do Caminho-de-ferro há muitos anos, leva uma vida quase agitada, contrariando à sua maneira (aparente) de homem calmo, isto porque não dispensa um copo num “Buteco”, nome que ele dá aos lugares onde vai beber o seu whisky, geralmente em boa companhia feminina.
O ser casado, nunca o impediu de ter estas pequenas fugas de bom vivente na noite que conhece como ninguém, sempre fez muitos amigos e adora a noite. Então pelo fado… tem uma paixão que muitos apontam de exagero. É um grande entendido na matéria e no meio do fado, não há quem não conheça o Márcio da CP.
É o autor da frase mais paradoxal que ficou celebre no ambiente fadista:
” No fado falasse calado”.
Homem seríssimo, em contas ninguém o bate, também por isso foi convidado para tesoureiro do Clube do Fado do Porto.
Andou louco de paixão por uma fadista extremamente sedutora, mulher fascinante e de grande beleza com uma voz muito castiça, divorciada de um fadista conhecido de quem tinha uma filha. O Márcio chegou mesmo, por algum tempo, a viver com ela para os lados da Foz. Não fora a intervenção do Marques junto da família e desta vez a dona Laurinda não lhe perdoava, se é que alguma vez esqueceu...
O Márcio é uma figura de homem com charme, cabelo um pouco grisalho e sempre impecavelmente vestido, com seus fatos de trespasse e a gravata que nunca prescinde. Um verdadeiro cavalheiro no trato, então com mulheres…
Na escala dos seus gostos, põe sempre os filhos à frente, depois vêem sucessivamente: As mulheres, os amigos, o fado e os copos. Enfim, o Márcio é um marialva dos tempos modernos, com a sua arrogante dose de machismo.

O maior amigo do Márcio sempre foi o Marques, homem de convicções sólidas, amigo sempre presente em todos os momentos, ombro das horas más e crítico dos maus passos. Amigos de infância, passaram juntos por muitas tristezas e alegrias, desde jogar a bola na rua de pé descalço até irem juntos para a guerra nas antigas colónias ultramarinas, um para Angola e outro para a Guiné. Só mesmo a guerra os separou…
O Marques é compadre do Márcio por lhe baptizar um filho, (só mesmo o Márcio Cunha o faria entrar numa igreja), ele que é um ateu convicto….,
Conhecem-se ainda de muitos “Carnavais”, desde as lutas antifascistas antes do 25 de Abril (faziam parte dos que liam o Avante no WC do café Luar), até ao simples peditório para mandarem calcetar a rua onde moravam, porque a Junta de Freguesia não tinha verba, passando por uma empresa para colocação de alcatifas de que foram sócios e que acabaram por encerrar quando esta passou de moda.
O Marques, também faz parte da direcção do Clube do Fado do Porto, (foram os dois amigos levados pela mão do amigo comum Maciel Castro), aliás, o Marques Costa é mesmo o autor dos estatutos da associação.
Quanto à sua vida particular pouco se sabe, a não ser que é casado há muitos anos, ama a mulher e os filhos e que tenta preserva-los a todo o custo do reboliço da sua vida social.
Trabalha como encarregado de uma loja de supermercado, pertencente a uma cadeia do norte do país. Tem um nível cultural acima da média.
Adora cinema e é possuidor de uma videoteca enorme onde guarda religiosamente algumas preciosidades, a par de uma basta biblioteca onde rigorosamente, tenta juntar o filme à obra literária de onde foi feita a sua adaptação para o cinema. Então, tornasse interessante e bastante curioso, ver por exemplo: o livro “BELLE DE JOUR” de Joseph Kessel, ao lado do filme de Luís Buñuel “BELA DE DIA”, magistralmente interpretado por Catherine Deneuve. Ou ver o “BEM-HUR” de Lewis Wallace ao lado do filme de William Wyler com o mesmo nome, que teve o Charlton Heston como principal interprete. Ou ainda o “PARIS BRULE-T’-IL? De Dominique Lapierre e Larry Collins, junto ao filme “PARIS JÁ ESTÁ A ARDER? Realizado por René Clemant e interpretado por Jean-Paul Belmondo e Kirk Douglas entre outros. Claro que o Marques tem a sorte de possuir uma sala com estantes e um pequeno bar num dos cantos, para prazer dos amigos e sua vaidade.
É muito pouco conhecida a sua ligação a obras literárias, as quais assina com pseudónimo, embora todos lhe conheçam o modo crítico e acutilante, como escreve as suas crónicas semanais sobre a defesa do consumidor no semanário “Arauto das Notícias”.


Pág.9 (continua)

julho 30, 2008

ADELINA RAMOS


Partiu ontem da Casa do Artista para o cemitério do Alto de S. João, mais uma grande voz do fado, Adelina Ramos. Deixou-nos com 82 anos, a fadista que imortalizou temas como: “Ouvi cantar o Ginguinhas” ou “Não passes com ela à minha rua”, que mais tarde Fernanda Maria popularizou. Foi ainda proprietária da casa de fados “O Tipóia” na década de 60.

EDUARDO ALÍPIO


MARIA DO DOURO / 1991

Bonita de cor trigueira
Tem nos braços a canseira
Duma vindima do Douro
Tem no corpo o movimento
De danças feitas ao vento
Num campo de milho louro

Maria do Douro
Tu és o tesouro
Que ainda me resta.
É doce teu vinho
Que alegra o povinho
Em dias de festa.
Na terra que amanhas
Na luta que ganhas
O pão do teu dia.
É teu esse chão
E queiras ou não
És Douro Maria.

Nascida em terra de lendas
Na arca que guarda rendas
Vive uma moura encantada.
E nos “Cantaréus” que canta
Anda uma alegria santa
A ponto de cruz bordada

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

— Foi um símbolo da simplicidade, fiel ás suas raízes. Nasceu na Mouraria em Lisboa, no dia 21 de Novembro de 1933, embora a sua mãe fosse natural do Bonfim no Porto.
— Só tenho a respeitar as opções! Também só cantava o que queria, ninguém lhe impingia nada.
— Claro! É impensável para mim, alguém cantar o que não entende ou dizendo em verso o que não sente. Como pode uma mensagem passar, se o seu arauto não acredita nela? Por isso é que quem sente o que canta, são aqueles que nos arrepiam os pelos dos braços, quando os ouvimos.
— E é por isso mesmo que penso, que um quinto de bons fadistas que falaste há pouco (em relação ao total de 449 é muito. Infelizmente bons mesmo? Há menos, muito menos…
­— Depois há os que andam no fado só pelo protagonismo, com petulância e ares de importantes só porque nasceram com o dom para cantar (ou não), mas que têm por trás máquinas publicitárias bem oleadas, ou ainda, amigos na comunicação social. Mas que nos dizem pouco quando cantam, muito pouco.
— Ainda existem os que cantam bem, só que são brigões por natureza, ainda vivem num fado que já não existe, decadente e promíscuo que passou de moda. Aquele com faca na liga, brigão, manguela, bêbedo e malcriado. Hoje o fado ganhou outra dimensão, adaptou-se à realidade deste século e hoje não faz sentido a “Desgraçadinha” de outros tempos. Tomando como exemplo o fado “Amor de Pai”, que muitos ainda cantam, não posso concordar com a sextilha que diz:

Toda a mulher todo o homem
Do amor de pai não se farte
Amor como esse não há
Pois o pão que os filhos comem
É a mãe quem o reparte
Mas é o pai quem o dá

— Hoje e cada vez mais, isto não é verdade, quantas mães solteiras e mesmo casadas, trabalham para sustentar os filhos? O que esta sextilha diz, foi noutro tempo em que a mulher ficava em casa, hoje tudo se modificou e a liberdade da mulher foi uma conquista do século XX.
— Sem nunca renegar as suas origens e tradições, o fado pode ser o veículo da denúncia social, mas com letras mais construtivas. Claro que também tem obrigação de enaltecer o bem, o belo, o amor e a saudade, os valores e sentimentos verdadeiros, trazendo ao povo autoestima, optimismo e porque não, um pouco de alegria. As novas gerações que ouvem o fado já não são iletrados, possuem hoje uma nova visão do mundo, mais progressista e adaptada a esta aldeia global em que o mundo se tornou. Mal ou bem esta é a época em que vivemos e podemos muito bem contar uma história no fado, com palavras que todos entendam, rica de sentido e humanismo, sem cair no fatalismo ou na desgraça.
— Completamente de acordo, nós é que nos temos de adaptar aos novos tempos, preservando as nossas tradições sem nunca as pôr de lado nem as renegar.


————— * —————

O Marques e o Márcio, tinham acabado de jantar quando se registou mais um momento alto de noite, a Lucinda cantou no fado “Pedro Rodrigues”, uma letra de António Terra, com o título: “Lamento da Terra”.
— Bravo! Bravo! – Exclamavam alguns.
— Que linda voz a rapariga tem! – Comentavam outros. A sala estava ao rubro e de repente o silêncio. As guitarras trinavam agora o “Menor do Porto” e a voz da Lucinda entoou pela sala, com uma letra que tem o titulo “Recado a minha mãe”:
Ó Minha mãe minha santa
Se pudesses cá voltar
Tinha tanta coisa, tanta
Minha mãe p’ra te contar.

Dos filhos tenho meiguices
P’ra compensar teus afectos
Ò minha mãe se tu visses
Que lindos são os teus netos

E se vires meu pai também
Num, canto desse jardim
Diz-lhe que vai tudo bem
E dá-lhe um beijo por mim

Os aplausos á mistura com algumas lágrimas, soaram por toda a sala. O Marques fez questão de dar um abraço ao amigo Márcio, dizendo:
— Onde foste descobrir esta voz? Ela é formidável, vai ser muito difícil a escolha este ano no Coliseu, temos uma grande tarefa pela frente... Pelo que já me disseram, vai lá estar uma tal Lígia Coutinho e não só, para disputar o primeiro lugar.
O apresentador e coordenador de fado, Albérico Pereira estava siderado, tinha conhecido muitas vozes, mas esta era de facto uma excelente voz de fado.

Pág.8A (continua)

julho 29, 2008

ANA MADALENA (Letrista)


Autora de muitas letras de fado, Ana Madalena (que também canta e bem), sabe dar ao que escreve uma profundidade sentida nas palavras. Veja-se por exemplo, a bonita letra que América Rosa recriou com música de Nel Garcia: “Longa Caminhada” e que ainda hoje é cantada por muitos fadistas, como Amélia Maria que a incluiu no seu trabalho “A Voz com que vos canto”.

FRANCISCO LISBOA


MEU PAI MEU TIMONEIRO / 1991

Dos amores de todos nós
Amor de pai é talvez
O que menos canta a voz
Do coração português
Se o fado é oração
Canto nele este recado
Ó meu pai como era bom
Inda te ter a meu lado

Ó meu pai
Meu amigo verdadeiro
Meu amor meu timoneiro
Dos passos qu’eu ando a dar
Ó meu pai
Que saudades companheiro
Dessas noites de Janeiro
Com histórias p’ra contar
Ó meu pai
Sem ti a vida é mais dura
Há quem pense ser loucura
Eu inda chorar por ti
Mas não meu pai
Sabes meu pai
São as saudades de ti

Os teus conselhos meu pai
Guardei-os com devoção
Só a saudade não sai
Dentro do meu coração
Meu pai aí no além
Vela por meu amor
Eu cá na aterra também
Rezo por ti ao senhor

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)


Claro que a Mariza, não é uma nova Amália como muitos dizem.
Quando a Amália morreu, pelas exéquias que teve e pela aderência anónima e popular com que se revestiu toda a cerimónia, foi o maior funeral visto no nosso país e todo o povo, incluindo a juventude foi sensibilizada para o fado, daí, começarem a aparecer novas vozes a cantar temas que Amália imortalizou e que fez com que muita gente pensasse ter encontrado novas “Amálias”. Mas não, Amália só houve uma. A Mariza é a Mariza, como a Katia Guerreiro é a Katia Guerreiro e a Mafalda Arnauth é a Mafalda Arnauth.

————— * —————

— Ora aí vem a Lucinda! Vou apresentá-la ao Albérico para que ponha a cantar estou ansioso por ouvi-la – Disse o Márcio erguendo-se da mesa.
— Fala-lhe do concurso, as inscrições ainda devem estar abertas — Disse-lhe o amigo.
De novo na mesa, os dois retomaram a conversa: – A minha opinião é que existiram sempre mais homens que mulheres a cantar, por isso penso que ser muito importante, aparecerem mais vozes femininas.
— Perdoa-me mas discordo contigo – retorquia o Marques – e podemos até fazer uma coisa muito simples: Numeramos uma folha de papel. Fazemos um traço na vertical de cima a baixo, de um lado dizes nomes de cantadores, do outro, eu digo nomes de cantadeiras (que aliás, era palavra que o Alfredo Marceneiro embirrava, porque dizia não existir o verbo “cantadar”). Vamos ver chegando ao fim, que lado do papel tem mais nomes… Aceitas o desafio?
— Vamos a isso, mas atenção, são só fadistas do norte e nomes, mesmo daqueles que já “partiram”, ok?
— Tira daí do teu caderno uma folha de papel, mas atenção amigo Marques, quem perder paga o jantar!
— Ok, diz lá primeiro.
E a lista (Como pode consultar nas últimas páginas deste livro), ficou assim…
(…)
Ora temos mais 45 homens a cantar, o resultado final fica então assim: 247 Homens e 202 Mulheres. O que dá no total: 449 o cantar fado no norte.
— Tirando o facto de ter que pagar o jantar, olha que a diferença não é muito grande, temos ainda que ressalvar, que decerto não nos recordamos de muitos nomes e outros nem conhecemos com toda a certeza. Em Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Penafiel, Guimarães, Gondomar, Vila Nova de Gaia e mesmo até Aveiro, ouvi muita gente cantar fado que não me recordo dos nomes. Até porque nestas localidades, se não há, já houveram muitos locais onde se cantava fado.
— Mesmo assim, há mais homens que mulheres a cantar, se bem que nestas 449 vozes e depois de feita uma triagem, ficaríamos com: Um quinto de bons fadistas; Dois quintos de vozes razoáveis e agradáveis de ouvir; Os últimos dois quintos, são vozes sem valor algum, mas que gravitam no meio fadista, pelo muito amor que dedicam ao fado. Tenho razão Márcio?
— Não concordo totalmente, tens que ver que o fado é uma canção urbana, é uma canção do povo e o povo tem direito a tudo, até cantar como sabe e pode. Também sei que dentro dos preceitos tradicionais que o fado exige, existem muito poucas vozes com verdadeiro valor no fado, coerentes com aquilo que cantam, alheados de interesses económicos, cantando o que gostam e não o que calha, escrupulosos na escolha do seu reportório.
— Isso de interesses económicos… Temos que concordar que um profissional é disso que vive! Embora haja excepções, temos o caso do Fernando Maurício, que em qualidade era inegável e quantas vezes trocava um espectáculo bem remunerado, por umas horas entre amigos no fado vadio?
— Isso é verdade, mas infelizmente vê como foi a vida dele! Ou talvez tenha sido um fadista de valor até por isso… Se bem que foi sempre reconhecido como um “Um Grande Fadista” pelo povo que o cognominou de o “Rei sem coroa”.
— Bem, também foi reconhecido oficialmente, por quatro vezes: Prémio da Imprensa (1969); Prémio de Prestigio e de Carreira da Casa da Imprensa (1985/1986); Comemorações das Bodas de Ouro, em 31 de Outubro de 1994, homenagem promovida pela C. M. de Lisboa no teatro S. Luiz; E foi agraciado com o título honorífico da Comenda de Bem-fazer, atribuída pela Presidência da República em 12 de Maio de 2001.
— Já em 2003, depois de frequentes visitas de José Neves, Nelson Duarte e Manuel Barbosa, ao Fernando já bastante enfermo, José Neves, promoveu uma grande homenagem no Teatro Sá da Bandeira no Porto, com a presença de fadistas de Lisboa e do Porto, mas… infelizmente póstuma, pois Fernando Maurício, o maior fadista da sua geração, tinha falecido nesse mesmo ano a 15 de Julho.

Pág.8 (continua)

julho 28, 2008

SÉRGIO MARQUES

Passa hoje mais um aniversário natalício, o meu amigo de infância e nosso amigo do fado, intérprete admirável e já há muito reconhecido no meio fadista, actor de teatro e declamador de poesia. Sérgio Marques. Parabéns Amigo!

EDUARDO ALÍPIO


FADOCANTO / 1991

Trago fado no peito como alento
Junto ás minhas coisas mais secretas
Dou-lhe a minha voz cantando ao vento
Palavras mais sentidas dos poetas

Foi fado o meu nascer ó minha mãe
Foi fado amores que tive e vi morrer
É fado o meu viver sem ter ninguém
Será fado o meu fim quando vier

Meu modo de cantar este meu jeito
Nasceu comigo numa tarde calma
Por isso trago fado no meu peito
E canto quando a dor m’invade a alma

É fado a minha voz que por encanto
Te leva esta mensagem plangente
É fado este sentir que t’amo tanto
E dize-lo cantando a toda a gente

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)


O Márcio e o Marques

— Obrigado pelos vossos aplausos! Foi o final desta primeira parte de fado, com a bonita voz e a presença sempre agradável de Fernanda Moreira! Esta noite, ainda vamos ter as presenças de: Lourenço Carvalho; Laura Santos; Manuel Bessa; Elisa Maria; Manuel Martins; Lina da Conceição; António Tavares e Olga Duarte. Vamos fazer agora o habitual intervalo, para que possam jantar à vontade. Até já meus senhores, bom apetite!
Era o Albérico Pereira, na apresentação de mais uma noite de fado no “Xaile d’Ouro”.
A casa nestes sábados à noite, estava sempre cheia por amantes do fado. Na mesa do canto e como já era hábito, jantavam dois amigos de muitos anos de fadistice, o Márcio e o Marques.
— Então a tal voz magnífica que vinha cá cantar, vem ou não vem?
— Calma! – Disse o Márcio – Deve estar a chegar com o marido, o Moutinho é o tal rapaz que trabalha comigo. Ele é que me disse que a Lucinda canta muito bem, vamos lá ver e ouvir...

————— * —————

O Márcio e o Marques sempre foram grandes conhecedores do fado, tanto um como outro, eram muitas vezes convidados para fazerem parte do júri em muitos concursos de fado. Sabiam distinguir, um bom fadista, pela voz, pela dicção, pelo compasso e pela sua raça, condição essencial de um bom estilador, que sabe fazer os requebros ou pianinhos como o fado exige. Davam grande importância ao saber silabar, não quebrando palavras e sobre tudo, ao saber dizer. O português bem prenunciado é fundamental para que se compreenda o poema e assim a mensagem nele implícito, chegue a quem o ouve com agrado.
O fado tem por intenção contar uma história, de alguém, dum lugar, dum sentimento, da vida, do quotidiano. Vai daquele que o canta e do modo como o faz, ao pôr mais ou menos ênfase, nas palavras que diz.
Muitas vezes a mesma letra é cantada por vozes diferentes, quando isso acontece, pode-se escolher aquele que mais gostamos de ouvir, por isso é que quando aparece um modo de estilar diferente, o fado é renovado e daí a sua riqueza, por estar constantemente em renovo, como diz o grande letrista Mário Raínho.
Também o Alfredo Marceneiro, disse numa das raras entrevistas dadas a Henrique Mendes, em finais dos anos sessenta: (“O poema é que me inspira o modo de cantar, por isso canto na mesma música de fado, poemas diferentes e de modo diferente”).
Para os menos atentos nestas coisas, peço que reparem em dois fados que de certeza, conhecem de ouvido: “Povo que lavas no rio” e “Igreja de Santa Estêvão”. O primeiro, foi imortalizado por Amália com uma letra de Pedro Homem de Melo, o segundo, foi uma criação de Fernando Maurício e tem como autor Gabriel de Oliveira. Mas…Ambos são cantados na mesma música o “Fado Vitória” de autoria de Joaquim Campos, no entanto, parecem diferentes… Porquê? É o estilo de cantar que cada um tem e (como dizia o Marceneiro), o poema manda que se cante de modo diferente. Como este exemplo existem milhares.
Podem ver nas últimas páginas deste livro, a grande variedade de músicas de fados tradicionais que existem (mais de 400), onde se podem “encaixar” letras de poemas diferentes, embora os considerados fados tradicionais, derivem de três músicas de fado principais e de autoria popular:
O Menor, o Corrido e o Mouraria.
Ainda existem letras que são musicadas pelos poucos (talentosos) músicos que temos. Claro que nem todos têm a inspiração dum Nel Garcia, Jorge Fernando, Eduardo Jorge, Fontes Rocha, Francisco Seabra ou Alexandre Santos.
As novas gerações de fado, tentam renová-lo vestindo-lhe outra roupagem menos tradicional, com o acompanhamento acrescido, como é o caso do acordeão, violino e até contrabaixo, mas quase sempre esbarram com uma critica feroz dos chamados puristas, que não vêem com bons olhos essas “modernices”.
Numa entrevista dada pela inteligente fadista Aldina Duarte, a dado momento, ela diz:
(“Pessoalmente, ainda estou na fase da exploração das raízes do fado e estou a gostar muito. Não sinto necessidade nenhuma de trazer nada de fora para dentro. Estou ainda muito encantada com aquilo que está cá dentro desta arte. Além disso, ainda preciso de aprender muito, depois logo se vê para onde isto me leva. Prefiro explorar cada vez mais o interior desta arte de tradição”).
Isto são palavras sábias, para quem quer e gosta de cantar o fado, mas a Aldina Duarte, sabe o que quer. Reparem nas letras que escreve e canta, onde se nota uma grande consciência politica e sabe que não se pode ir depressa. (“No nosso país a liberdade ainda é muito nova”), palavras suas.
Mas existem muitos que querem “renovar” essa tradição. Estiveram nesta linha de pseudo-renovadores, nomes como Paulo Bragança que chegou a cantar descalço e de capa preta atada ao pescoço, para “ Limpar o pó ao fado” como disse numa entrevista à RTP e que mereceu severas criticas.
Claro que nem toda a nova geração optou por caminhos degenerativos, como é o caso de António Laranjeira, Ana Moura, Filomeno Silva, Mariana Correia, Jorge César, Filomena Sousa, Gonçalo Salgueiro. Ou ainda mais castiços, como Ricardo Ribeiro, Ana Sofia Varela, Joaquim Brandão, Aldina Duarte, Hélder Moutinho, Ana Maurício, Manuel Barbosa, Cátia Garcia, Camané ou António Zambujo. Embora existam nesta nova geração de fadistas, algumas excelentes vozes, que além da guitarra e viola, cantam acompanhadas por contrabaixo, mas que têm sabido cativar para o fado a juventude, que cada vez mais adere a este fenómeno quase moda. Fadistas como Katia Guerreiro, Pedro Moutinho, Mafalda Arnauth, Cristina Branco, Mísia, Maria Ana Bobone e até Mariza, que mesmo com o seu penteado futurista, mas como uma voz que fascina e cativa quem a ouve, que o digam os circuitos internacionais por onde passou, que lhe atribuíram galardões e prémios nunca alcançados no domínio do fado, pois agora a canção nacional faz parte da chamada Word Music, como sucedeu no Festival Med.

pág.7 (continua)

julho 27, 2008

JOÃO CORREIA

Faz hoje um ano que partiu prematuramente, João Correia.
Este fadista do Porto, possuidor de um estilo muito próprio de cantar, era ainda autor de mais de uma centena e meio de letras de fado, a que muitos deram voz, como Alma Rosa e tantos outros. Actuou em muitas casas de fado em Lisboa e no Porto. Fez ainda parte do elenco da saudosa casa “ o Rabelo” durante muitos anos, ao lado de Fernando João, Luiza Salgado e Leonor Santos.

JOSÉ FERREIRA


TUDO BEM / 1989

Finjo qu’está tudo bem
Quando me vens perguntar
Porque a aparência convém
A quem sofre por amar.
Tanta coisa por dizer
E apontar erros também
Com medo de te ofender
Digo sempre: Está tudo bem!

Sei que vives a sofrer
Não queres dizer, sei muito bem
Também dizes por dizer
Quando perguntas: Vai tudo bem?
Teu gostar não e igual
Ao meu gostar que te quer bem
Mas meu amor por meu mal
Digo sempre: Está tudo bem!

Meu amor vai tudo bem
Sigo na vida teus passos
Para mim, esta tudo bem
Quando estás nos meus braços.
Talvez um dia porem
Tu vejas bem para onde vais
E então, nada vai bem
Porque será tarde de mais

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)
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Martinho conheceu a Lizete numa noite de fado no “Chalé” (restaurante oficial do Clube do Fado), ficou deslumbrado com o seu olhar, que não descansou enquanto não a conheceu melhor. É um sonhador e a amizade que tem por ela, secretamente e cada mais, vai evoluindo para um paixão que não quer assumir, por medo e em nome da tal estabilidade familiar, também nunca confessou o que lhe vai na alma, deixa as coisas correrem naturalmente e até parece que não vão nada mal, a avaliar pela última conversa que teve com ela no café Florida, onde se encontram todos os dias depois do almoço por trabalharem ali perto.

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Lizete Cruz é funcionária pública no Arquivo de Identificação, tem mais de trinta anos de serviço. É mãe solteira e assume-se como uma mulher independente, o que não tira de quando em vez, ter um relacionamento com alguém mas sempre como ela diz: — Sem compromisso.
Teve a filha muito cedo com alguém, que diz à muito ter esquecido, alem disso, considera a melhor asneira que fez na vida. Adora a filha e tudo faz por ela, a Leonor é o seu orgulho e quase finalista na faculdade de Direito. Gosta de a ouvir cantar o fado, embora pense que talvez para ela, seja um capricho passageiro.
Tem um modo extravagante de vestir, pela mania de querer parecer mais nova do que é. Vive só com a filha numa casinha que a mãe lhe deixou para os lados das Antas, claro que também é uma aficionada do FêCêPê e não perde um jogo, no estádio do Dragão onde tem dois lugares cativos, sim porque a Leonor vai pelo mesmo caminho pintado de azul e branco.
Tem uma pequena paixão pelo Martinho desde que o conheceu a dizer poesia no “Chalé”, lugar onde foi pela primeira vez, levada pelos ideais afadistados dum colega de secção onde trabalha. Foi aí que sentiu e bebeu todas as palavras do Martinho Conde, agora, desconfia que muita da poesia que ele diz é mesmo de sua autoria, embora ele diga sempre que não. Esta desconfiança vem-lhe duma conversa sobre os heterónimos de Fernando Pessoa, aquando de uma troca de impressões sobre este autor. De heterónimos passou-se a pseudónimos e quase concluiu que existe um Martinho Conde com o pseudónimo de Olecram, um dos seus autores preferidos.
É uma romântica praticante, mas lá no fundo anseia um dia pôr em pratica toda a sua ideologia, ainda não descobriu é com quem. Possui uma enorme colecção de lingerie, porque adora rendas, sedas e todas as peças de vestuário íntimo, cuja textura do tecido seja macia e leve.
Como a Lizete diz: “Ser sexy não é pecado! É apenas exercer o poder de sedução que Deus me deu.”
Conhece a mulher do Martinho, compartimenta-a e tem por ela uma ternura, que não sabe se é uma mistura de compaixão e ciúme, ou raiva por não ter chegado primeiro...

Pág.6 (continua)

julho 26, 2008

FERNANDA BAPTISTA

Partiu ontem mais um grande vulto do Fado, Fernanda Baptista.
Disse-nos "Adeus" com 89 anos, 54 dos quais passados em cima dos palcos. A criadora de éxitos como: "Fado da Carta", foi condecorada em 2003 pelo Presidente da República Jorge Sampaio, com a Ordem de Mérito e era Sócia de Mérito da Associação Portuguesa Amigos do Fado.
Paz à sua alma!

JOSÉ FERREIRA

MODO DE AMAR / 1989

Se tanto nos desejamos
Para quê contrariarmos
Nossa vontade de amar
É preconceito que existe
E o medo que lhe assiste
Que os outros possam pensar

No mundo em que vivemos
Meu amor, nós não podemos
Viver a nossa aventura
Um dia vai acabar
Esta maneira de amar
Nossa vida é uma loucura

Tudo aquilo que pensamos
Um do outro o que gostamos
É só nosso, esse segredo
É um amor feito miragem
Por não termos a coragem
De enfrentá-lo sem ter medo

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

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Martinho Conde tem uma vida que tudo faz para que seja estável (aparentemente pelo menos), preserva a família como a coisa mais importante do mundo e procura nunca fazer nada que cause qualquer instabilidade.
Trabalha como litografo há muitos anos na mesma empresa, onde desfruta de um lugar de destaque. Remunerado acima da média consegue levar um padrão de vida razoável. Tem quatro filhos dos quais, apenas uma ainda vive lá em casa, continua a ter uma boa relação com eles e não está nada arrependido da educação que lhes deu, embora a mulher diga muitas vezes que lhes deu liberdade a mais.
Faz parte da direcção do Clube do Fado do Porto, onde é sócio fundador, do pouco tempo livre que dispõe, ainda arranja algum para este cargo, só porque gosta muito do fado e é um estudioso do seu fenómeno social como canção nacional. Possui uma razoável biblioteca sobre o tema, de onde vai extraindo elementos para as suas palestras muito apreciadas no Clube, nas chamadas “Quartas-feiras de Fado”, dia em que tem lugar no pequeno auditório, encontros com gente do fado e onde assistem as mais variadas pessoas interessadas nesta história fascinante da nossa canção. Por lá já passaram conhecedores reconhecidos, desde José Neves a Fernando Batista.
Foi mesmo numa quarta-feira dessas, que (em colaboração com da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa, com sede em Lisboa), se recolheram no Porto, assinaturas de apoio para a candidatura do Fado a Património da Humanidade.
Foi o Martinho que fez um protesto, junto da comissão designada para elaborar o projecto, para que se recolhesse assinaturas noutros pontos do país e não só em Lisboa. Tudo bem, o projecto era deles, mas a candidatura devia ser a nível nacional, não é só uma cidade, mas sim um país, que tem uma canção nacional que se chama fado que estava em causa.

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A ideia que foi acolhida com muito entusiasmo no meio fadista, depois da Câmara Municipal de Lisboa aprovar a proposta para o início da candidatura à UNESCO, para que o Fado fosse elevado à categoria de obra-prima do Património Oral e Imaterial.
Esta Câmara nomeou como embaixadores da iniciativa os fadistas Mariza e Carlos do Carmo, o que Martinho acha muito bem, pois são no momento os maiores embaixadores da canção nacional no estrangeiro.
A proposta está ser tratada com todo o cuidado, para que não aconteça como o caso da Argentina, que viu a sua candidatura sobre o Tango rejeitada pela UNESCO.
Enfim, tal como do Tango da Argentina ou do Flamengo em Espanha, o Fado está no momento a ter a sua consagração a nível mundial. Embora o Martinho não concorde nada, com o papel em que estão a embrulhar essa candidatura, onde diz: “Fado tradicional de Lisboa”. Francamente!...
Outro caso que no momento apaixona o Martinho e os amantes do fado em geral, é a aquisição pelo estado português, da colecção de discos de fados na posse do britânico Bruce Bastim. (*)
Como garantiu o secretário de estado da cultura, Mário Vieira de Carvalho, o valor desta colecção é de 1,1 milhões de euros e vai integrar o futuro museu da Música e do som, onde possui pessoal técnico específico para tratar este material.
Para o musicólogo Rui Vieira Nery, a aquisição deste espólio “é essencial para um melhor conhecimento da história fadista, nomeadamente nos primórdios da gravação fonográfica”.
Sara Pereira, do Museu do Fado, manifestou também satisfação por esta decisão do pelouro da cultura portuguesa e sublinhou como “fundamental para um melhor conhecimento da história do fado”.
A fadista Mariza, embaixadora da candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade, disse sobre a colecção de discos: “é um sonho tornado realidade”.
A colecção de cerca de oito mil discos, inclui registos fonográficos efectuados entre 1904 e 1945, na sua maioria dados como perdidos. Além dos fados em si, são igualmente importantes do ponto de vista musical e etnográfico, os registos tardios de Maria Alice, Estêvão Amarante, Madalena de Melo, Maria Emília Ferreira, Ercília Costa, Berta Cardoso, António Menano, Edmundo Bettencourt, Armandinho, Alfredo Marceneiro entre outros menos conhecidos.

(*) Hoje, esta colecção já se encontra em Portugal.

Pág.5 (continua)

julho 25, 2008

ROSA CRUZ


MORRER DE SAUDADES /1989

Meu amor se é verdade
Que se morre de saudade
Então está perto o meu fim
Pressinto a vida a fugir
Que ás vezes chego a sentir
Mesmo saudades de mim

A tua presença invento
E à noite há um momento
Que estas comigo deitado
Pois ando assim como louca
Com o teu nome na boca
A chamar por todo o lado

De manhã ao despertar
Deixo meus olhos estar
Fechados para te ver
Ponho a mesa para os dois
E no silêncio depois
Fico a ver-te comer

Deito o meu rosto nos braços
E com a alma em pedaços
Fico à janela a esperar-te
A madrugada acabada
Volto p’ra dentro cansada
Esta noite não vieste

Meu coração não resiste
A solidão que persiste
Em viver nesta ansiedade
Se não voltas meu amor
Vai acabar esta dor
Porque morro de saudade

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

A Lizete e o Martinho

— Faz tempo que não me sentia tão bem a conversar com alguém. – Dizia o Martinho Conde – Tens o dão de saber ouvir e é curioso que nestes breves encontros de café que temos tido, falo contigo sobre temas que nunca falei com a minha mulher. Ela é uma pessoa conservadora, limitada pela educação que teve, chega muitas vezes a ser retrógrada nas ideias que tem por exemplo: em relação ao sexo e a conceitos ultrapassados pelo modo de viver uma vida a dois. Não é capaz de ver um filme pornográfico, diz sempre: “ Que porcaria!” Não é capaz de usar na cama uma peça mais sexy, e diz: “Isso não é para mim!”
— Mas onde está o problema?
— Que queres? É assim! Tu és mais aberta, tens outros horizontes de vida, claro que há coisas em ti que eu não concordo, mas também é muito difícil encontrar um equilíbrio perfeito ou a chamada pessoa ideal.
— Numa coisa estamos de acordo – respondeu Lizete Cruz – A rotina destrói completamente qualquer relação a dois, a vida tem que ter algo de picante e ser vivida dia-a-dia como resume numa palavra, o professor no filme Clube dos poetas mortos: “Carpe-dien” (aproveita o dia). É o que tento fazer a todo o custo, mesmo contra a imposição que socialmente sou obrigada a viver no trabalho e no quotidiano que me é imposto pela civilização. Sei por exemplo: Que não aceitas bem a minha forma extravagante de vestir. Pensas que não reparo como por vezes ficas chocado, da forma directa como digo foder em vez de relações sexuais, fazer amor ou curtir, como a juventude diz agora. Mas uma coisa te garanto, se esta nossa amizade vier um dia a ser desfrutada na cama, nunca te deixarei desiludido, porque sou uma acérrima militante da anti-rotina e discípula ferrenha das palavras de meu pai (numa sua conversa entre amigos, que ouvi por trás do reposteiro do corredor, ainda era menina e não mais me esqueci):
(…) “Tudo o que se faz dentro da porta do quarto para dentro, ninguém tem nada com isso”…
— Nunca estive tão de acordo contigo, tomara eu ter em “casa” uma imaginação tão prodigiosa, aliás, penso que as mulheres duma maneira geral, menosprezam o poder de sedução que possuem, bastava soltarem-se mais, darem o verdadeiro valor ao sexo, que no fundo faz tão bem ao corpo e à alma.
— E é muito bom, meu querido! …
— Porque procuram os homens noutros locais, aquilo que podiam muito bem ter em casa, era tão simples… Por exemplo: Porque será que só nos filmes, nas revistas etc., se vêem mulheres com lindos corpetes, camisas de noite atraentes, enfim, lingerie deslumbrante capaz de despertar qualquer homem mais distraído; Porque é que só nos filmes se vêem jantares para dois à luz de velas, ambientes tão românticos capaz de fazer derreter o gelo a qualquer mortal; Porque se alindam as mulheres (vão ao cabeleireiro, arranjam as unhas, as sobrancelhas, pintam os olhos, enfim...), apenas quando vão sair, e não têm essa preocupação com a sua imagem também para os maridos; Porque não se despem provocante e sedutoramente para os seus homens e queixam-se depois, que eles frequentam as casas nocturnas para verem shows de strip e chegam tarde a casa.
— Tens toda a razão.
— Se calhar estou errado na percentagem, será que uma maioria o faz? Não creio, tendo como exemplo o “escândalo” de Bragança, que só vem dar razão à minha teoria.
— Meu querido Martinho, estás mesmo a precisar que te convide para “jantar” lá em casa…
— Jantar, só?
— Como dizem os brasileiros: “Pode ser que pinte um ambiente”. Vamos ter que pensar nisso o mais depressa possível, pois reparo que andas com a tua autoestima muito em baixo, e não só!
— Não demores Lizete, neste momento já não te estou a ver só como amiga, depois, ando com vontade enorme de dar uma facada no casamento…
— Estás a mudar, ou é impressão minha!
— Agora temos que ir trabalhar minha amiga, são horas, ligas-me amanhã para tomar café?
— Ligo, temos que continuar esta conversa, o tema agrada-me imenso...
— Está bem minha tola, até amanhã.
— Depois no sábado vamo-nos ver, a minha filha vai cantar e eu ando com saudades de ouvir bom fado. Vou ao “Chalé”, sei que está lá um bom elenco e gostava que apresentasses a Leonor, apareces?
— Claro que apareço, tenho sempre mesa marcada, mas... não vou só, vamos dois casais, vê lá se és discreta sim?
— Posso olhar ao menos! Juro que não dou nas vistas.

Pág.4 (continua)

julho 24, 2008

JOSÉ FERREIRA



QUEM FOI? / 1989

Quem mandou a abelha fazer mel?
Quem ensinou a aranha a tecer?
Quem disse à Maria qu’era o Manel
Que o seu coração ia escolher?

Quem disse à planta p’ra crescer?
Quem ensinou a ave a fazer ninho?
Quem ás águas do rio foi dizer
Que era por ali o seu caminho?

Quem deu à flor o seu perfume?
Quem ensinou os pombos arrulhar?
Quem disse à mulher p’ra ter ciúme
E ensinou à gente o verbo amar?

Quem é que à noite manda vir a Lua?
Quem manda o Sol embora ao fim da tarde?
Quem é que diz que a vida continua
Mesmo depois da morte ser verdade?

Quem fez o Céu a Terra o Mar imenso?
Quem fez a dor a fome o riso o pranto?
Quem fez todo este povo a quem pertenço
E deu-me a mim o fado que hoje canto?

Quem nos dá a força p’ra não faltar
Na nossa mesa o pão e o carinho?
Foi quem me deu a voz p’ra eu cantar
E é dono e Senhor do meu destino!


À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

O pai morreu-lhe nos braços há onze anos atrás, tinha ela vinte e cinco, com um enfarte cardiovascular.
Adorava-o pelo carinho que tinha por ela, era incapaz de lhe levantar a voz, e perdoo-lhe tantas asneiras que fez na sua adolescência, sem nunca lhe perguntar nada… Só lhe dizia: “Conforme fizeres a cama, nela te deitas”.
Todos os sábados de manhã, lhe leva flores ao Prado do Repouso. Ás vezes fala com ele e pede-lhe ajuda para as vicissitudes da vida.
Nasceu e viveu nas Condominhas, hoje mora numa casa dos bairros camarários prós lados do Amial, renda acessível o que dá (nos meses em que não tem que gastar na farmácia com a mãe,) para ir ao cabeleireiro e jantar fora de vez em quando.
Á muito perdeu a esperança de casar. Não é nada de deitar fora, sente-se até uma mulher bonita e atraente, mas isso apenas lhe traz um “Maciel Castro” de vez em quando. Tem trinta e seis anos mas... quem quer um compromisso sério, com uma mulher que tem uma mãe idosa e doente a seu cargo? É assim que pensa, talvez por isso nunca se tenha prendido a ninguém.
É a sua sina, o seu fado e a Lígia à muito se conformou com essa sorte.

————— * —————

Maciel Castro é encarregado de uma oficina de restauros, ninguém como ele conhece a arte de restaurar na perfeição um móvel Luís XV ou uma cadeira italiana estilo renascença. É hábil com o mordente e ouro fino. Ainda pinta com uma paciência de santo, imagens antigas ou decora com precisão, contadores da Índia com delicados entalhes de marfim.
Ganha bem, mas vive só e amargurado por recordações que teimam em não desaparecer da sua mente. Uma separação dolorosa que o prostrou durante tempos com um esgotamento, felizmente não havia filhos. Nunca pensou que ela fosse capaz de uma traição daquelas, amava-a loucamente e as saudades ainda hoje lhe moem a alma. E logo com o seu ” melhor” amigo...
Desde então, tornou-se um desconfiado das amizades, muitas vezes é mesmo agreste com quem lhe oferece um ombro. Tem o peito a abarrotar de tantas coisa que gostava de deitar fora, mas vai guardando e o pior, é que só guarda o que lhe faz mal.
É nas letras que escreve que subtilmente vai desabafando as suas mágoas. Em quadras, sextilhas ou decassílabos, vai desfiando o seu rosário de amargura para o papel, que depois dá para que outros cantem.
Quantas vezes ao ouvir os seus poemas, cantados por vozes que não são mais que veículos das suas mensagens, chora por dentro e vai alimentando a hipotética esperança, de ela ouvir um dia os seus poemas e com isso, faze-la sofrer também, pelo menos de arrependimento.
É raro, mas quando a encontra na rua, pensa como a tal canção tem razão ao dizer:

Porque é que a mulher que a gente deixa
Fica sempre mais bonita
E valendo uma paixão
Porque é que a gente morre de despeito
Quando vê que não tem jeito
Sequer de aproximação

Vive com esta dor na alma, remoendo no desgosto e cavando mais rugas que lança nas letras que escreve. Com a idade que vai avançando inexoravelmente, já à muito perdeu a esperança de voltar a viver uma vida em comum com alguém.
Cada um tem o seu fado, este é o seu…

Pág.3 (continua)

julho 23, 2008

À JANELA DO FADO (Livro)

Cada um tem o seu Fado

A Lígia e o Maciel


Lígia levantou-se ainda nua para pegar num cigarro. Sempre gostou de um cigarro depois, embora passasse bem sem o whisky, antes.
Ficaram a conversar um bom pedaço, sobre os últimos momentos e como se conheceram. Foi tudo muito rápido: O restaurante onde ambos jantavam sós, um olhar tímido ao principio, descarado depois, já juntos no bar e no mesmo táxi que os levou aquela pensão para juntos satisfazerem um desejo comum. Tinha sido uma atracção mútua, para duas pessoas que á muito tempo jantavam com a solidão por companhia.
Tinha vestido o seu conjunto de saia e casaco pela primeira vez, de um azul-marinho que dizia bem com o seu tom de pele clara, ficava muito elegante de casaco de trespasse e saia justa. Trouxera tacão alto muito fino e meias de costura cinza-rato. Por baixo do casaco, apenas o soutien de cor violeta bem ajustado aos seios, que fazia conjunto com umas lindas cuecas rendadas de seda. Um colar de pedras de fantasia realçava-lhe o colo e um par de brincos iguais pingavam-lhe das orelhas. Completava-lhe a toialete uma malinha preta de verniz igual aos sapatos.
Sentiu-se bonita logo que saiu do salão da sua amiga Laurinha, a quem confiava pentear-se pelo seu bom gosto, tinha-lhe feito umas madeixas finas e pouco claras, no seu cabelo castanho-escuro quase preto. Aquele era um daqueles sábados em que meticulosamente se arranjava, para uma das poucas extravagâncias que fazia de quando em vez: Jantar num bom restaurante, depois, ir até um lugar onde houvesse fado e pudesse cantá-lo.
— É curioso, mas ainda não me disseste o teu nome.
— Lígia dos Santos Coutinho. Para os amigos, Lia. No fado, Lígia Coutinho.
— Disseste no fado?
— Sim, disse!
— Mas porquê, cantas?
— Tento cantar, penso que tenho jeito.
— Gostava de te ouvir.
— Escrevi-me no concurso que o Clube de Fado do Porto organiza no Coliseu a 21 de Março. Estou ansiosa pelo grande dia, vou prestar provas a 28 de Abril. Mas porque me queres ouvir, gostas assim tanto de fado?
— Vê lá as coincidências, caiu-te na cama um dos organizadores desse concurso, Maciel Castro, faço parte do júri e sou autor de letras de fado.
— Não acredito! És o Maciel Castro que escreve letras tão bonitas? Não pode ser! Isto não me está a acontecer... parece de propósito! Bem, pelo menos devo ter um bom lugar garantido no concurso.
— Isso não prometo, mas tenho procurado alguém especial para cantar as minhas letras. Não me digas que encontrei! Anda veste-te, vamos ao “Fado” a S. João Novo, está lá o Rolando Teixeira e o Miguel Gonçalves a tocar, quero-te ouvir.
Lígia levada mais pelo espanto que pelo desejo, beijou Maciel com fervor e mais uma vez se envolveram numa união de corpos suados, naquela cama dum quarto de pensão de segunda.
O destino tem destas coisas, em qualquer esquina da vida marca-nos encontros.

————— * —————

A Lígia vive só com a mãe, senhora de idade avançada e doente. Não tem mais ninguém de família e quando precisa de sair, paga a uma vizinha para olhar pela velhota. Sai pouco, a não ser nas noites de sábado para ir fazer o que mais gosta, cantar o fado. Durante a semana trabalha como gaspeadeira numa fábrica de calçado, com o seu (pouco) salário e a pensão de reforma da mãe vão sobrevivendo as duas.

Pág.2 (continua)

EDUARDO ALÍPIO


NOITE FRIA / 1989

Nessa noite tinha sido
Um poema prometido
Com uma rima perfeita
A manhã veio tão fria
Só em nós calor havia
Dentro da cama desfeita

O bom dia que me deste
Foi um beijo que trouxeste
Já com sabor a saudade
A noite tinha acabado
Foi cada um p’ra seu lado
Para chorar a vontade

Na hora da despedida
Sentimos em nossa vida
Tudo ia ser diferente
Um ao outro nos demos
E o amor que fizemos
Ficou marcado p’ra sempre

Bendita seja essa hora
Onde o frio foi açoite
Que em nossas mãos morreu
Havia frio lá fora
Mas nosso amor nessa hora
Ate o mundo esqueceu

julho 22, 2008

À JANELA DO FADO (Livro)















INTRODUÇÃO

Esta é a história de quatro mulheres que não se conhecem, mas que têm em comum o gosto de cantar o fado. O destino marcou-lhes encontro no palco do Coliseu, num concurso organizado pelo Clube de Fado do Porto. E tal como a sina ou a sorte que nos cabe na vida, cada uma delas vai seguir caminhos diferente, mas que no fundo, não são tão diferentes como isso, pois a busca da felicidade será sempre comum a todos os mortais.
Depois, como Fado é uma palavra utilizada como sinónimo de destino, sina ou sorte, sempre (ou quase sempre), conotada com o fatalismo e o inevitável. (Que tem a sua raiz no latim [fatu], mas já fazia parte da mitologia romana [fatum], quando era crença geral que Júpiter, considerado pai dos céus, conhecia antecipadamente o futuro e dava-o a conhecer aos homens por meio de sinais e presságios). Essas mulheres vão cumprir o seu fado.
Vão também encontrar no decorrer desta narrativa, a minha intenção em demonstrar (ao contrário do que muitos pensam), que no Porto também existe o fado. A prová-lo, estão os mais de 180 lugares onde há (ou houve fado). Os nomes de mais de 450 fadistas e mais 120 tocadores que cantam e tocam (ou cantaram e tocaram) na cidade.
Citando Manuel Halpern, do seu livro “O Futuro da Saudade / O Novo fado e os novos fadistas” (Lisboa: Dom Quixote 2004), lê-se na pág. 29:
“ (…) Contudo, ainda no princípio do século XX, converteu-se na canção nacional por excelência, após se ter expandido para o Norte, para o Sul e para as ilhas (…)”. E ainda:
“ (…) Claro que Portugal não é só fado e de norte a sul do país há uma rica etnologia musical, desde o folclore minhoto ao canto alentejano, passando pelo corridinho algarvio. Contudo, o fado é o único género que adquiriu uma dimensão nacional, é uma canção de todo o país “.

Numa curta entrevista na RTP, no programa “Portugal no coração”, onde estavam presentes Samuel Cabral e Nel Garcia, exímios tocadores de fado, Carlos Malato fez ao fadista Fernando João a seguinte pergunta:
— Existe fado do Porto e fado de Lisboa?
À qual este excelente interprete de fado (que por acaso é do Porto), respondeu e bem!
— Não há fado do Porto ou de Lisboa, o fado é português, ponto final.
Esta tem sido a luta de muita gente do fado no Porto, que teimosamente se mantém agarrado à sua cidade. Claro que mesmo daqui (e tal como o nosso Infante partiu do “Ouro” em busca de novos mundos), também muita desta gente do fado tem actuado no estrangeiro com êxito. Muitas vezes a convite, dão um salto à capital, uns esporadicamente e outros como é o caso de Nel Garcia, Samuel Cabral, Miguel Amaral, A. Tavares Barreto, Sandra Cristina, Andreia Ribeiro, Edgar Lima, Maria da Luz, Maria do Sameiro, Lina Rodrigues e Cátia Garcia, para actuaram em musicais de grande êxito de Filipe Lá Féria.
No caso de Cátia Garcia, que depois de fazer “Amália”, foi Alice no musical “Alice País das Maravilhas” e faz parte do elenco “A Canção de Lisboa”, a luta é ainda mais de louvar, quando se lê no seu “site” o seguinte:
(“Um dos seus desejos é conquistar a aposta no seu talento, por parte de uma editora e como tal quebrar a barreira e o equívoco que existe, quando se diz que no Porto não existe fado!”).
Mas vamos à história da Lígia, da Leonor, da Lucinda, da Lara e do fado que vive no Porto.

O Autor


Pág.1 (continua)

JOSÉ FERREIRA


SOU ASSIM / 1989

Meu amor eu reconheço
Por vezes não te mereço
Pelo meu modo de ser
Os meus caprichos aturas
E nunca amor te saturas
Da maneira de eu viver

Sei que mereço castigo
De não ser tão teu amigo
Como tu es minha querida
Tens-me sempre acompanhado
De mãos dadas lado a lado
Nas amarguras da vida

Os nossos filhos que amamos
E a muito custo criamos
São o orgulho sentido
Testemunhas de verdade
Das horas de felicidade
Que na vida temos tido

Fiz este fado p’ra ti
E as palavras que escrevi
Foi o meu peito a ditar
Eu sei que gostas de mim
Perdoa mas sou assim
E meu jeito de te amar

julho 21, 2008

SANDRA CRISTINA


O VELHINHO / 1988


De palito ao canto da boca
O cabelo longo esbranquiçado
Um velhinho falou-me com voz rouca
Dele de mim da vida e do fado

Cantas e encantas digo-te eu
Que tenho muitos anos fui artista
Com essa linda voz que Deus te deu
Tens graça e gajé p’ra seres fadista

Mas nunca te iludas com a fama
Sê sempre uma fadista verdadeira
Olha que depressa se cai na lama
Mas p’ra levantar leva a vida inteira

Deu-me um beijo e sai muito apressado
Trauteando o menor muito baixinho
Se Jesus também cantasse o fado
Seria tal e qual esse velhinho