julho 23, 2008

À JANELA DO FADO (Livro)

Cada um tem o seu Fado

A Lígia e o Maciel


Lígia levantou-se ainda nua para pegar num cigarro. Sempre gostou de um cigarro depois, embora passasse bem sem o whisky, antes.
Ficaram a conversar um bom pedaço, sobre os últimos momentos e como se conheceram. Foi tudo muito rápido: O restaurante onde ambos jantavam sós, um olhar tímido ao principio, descarado depois, já juntos no bar e no mesmo táxi que os levou aquela pensão para juntos satisfazerem um desejo comum. Tinha sido uma atracção mútua, para duas pessoas que á muito tempo jantavam com a solidão por companhia.
Tinha vestido o seu conjunto de saia e casaco pela primeira vez, de um azul-marinho que dizia bem com o seu tom de pele clara, ficava muito elegante de casaco de trespasse e saia justa. Trouxera tacão alto muito fino e meias de costura cinza-rato. Por baixo do casaco, apenas o soutien de cor violeta bem ajustado aos seios, que fazia conjunto com umas lindas cuecas rendadas de seda. Um colar de pedras de fantasia realçava-lhe o colo e um par de brincos iguais pingavam-lhe das orelhas. Completava-lhe a toialete uma malinha preta de verniz igual aos sapatos.
Sentiu-se bonita logo que saiu do salão da sua amiga Laurinha, a quem confiava pentear-se pelo seu bom gosto, tinha-lhe feito umas madeixas finas e pouco claras, no seu cabelo castanho-escuro quase preto. Aquele era um daqueles sábados em que meticulosamente se arranjava, para uma das poucas extravagâncias que fazia de quando em vez: Jantar num bom restaurante, depois, ir até um lugar onde houvesse fado e pudesse cantá-lo.
— É curioso, mas ainda não me disseste o teu nome.
— Lígia dos Santos Coutinho. Para os amigos, Lia. No fado, Lígia Coutinho.
— Disseste no fado?
— Sim, disse!
— Mas porquê, cantas?
— Tento cantar, penso que tenho jeito.
— Gostava de te ouvir.
— Escrevi-me no concurso que o Clube de Fado do Porto organiza no Coliseu a 21 de Março. Estou ansiosa pelo grande dia, vou prestar provas a 28 de Abril. Mas porque me queres ouvir, gostas assim tanto de fado?
— Vê lá as coincidências, caiu-te na cama um dos organizadores desse concurso, Maciel Castro, faço parte do júri e sou autor de letras de fado.
— Não acredito! És o Maciel Castro que escreve letras tão bonitas? Não pode ser! Isto não me está a acontecer... parece de propósito! Bem, pelo menos devo ter um bom lugar garantido no concurso.
— Isso não prometo, mas tenho procurado alguém especial para cantar as minhas letras. Não me digas que encontrei! Anda veste-te, vamos ao “Fado” a S. João Novo, está lá o Rolando Teixeira e o Miguel Gonçalves a tocar, quero-te ouvir.
Lígia levada mais pelo espanto que pelo desejo, beijou Maciel com fervor e mais uma vez se envolveram numa união de corpos suados, naquela cama dum quarto de pensão de segunda.
O destino tem destas coisas, em qualquer esquina da vida marca-nos encontros.

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A Lígia vive só com a mãe, senhora de idade avançada e doente. Não tem mais ninguém de família e quando precisa de sair, paga a uma vizinha para olhar pela velhota. Sai pouco, a não ser nas noites de sábado para ir fazer o que mais gosta, cantar o fado. Durante a semana trabalha como gaspeadeira numa fábrica de calçado, com o seu (pouco) salário e a pensão de reforma da mãe vão sobrevivendo as duas.

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